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sábado, 24 de dezembro de 2011

Enkel

Tinha, lá pra lá, em um lugar que nem tinha nome de tão longe, uma cidade pequena. Não viviam mais de algumas centenas de pessoas, mas era o suficiente. Suficiente para o mundo acabar ali mesmo. Era meio precária, cabanas tortas no meio do morro, algumas vacas e hortas em seus próprios terrenos. Não que cada pessoa tivesse um próprio território marcado, porque era tudo de todo mundo, tudo amigável porque o pecado não tinha ainda tocado a alma daqueles seres humanos tão distantes... Mas por pouco tempo.

Há alguns anos, Elizabeth, uma mulher pequena e loira, por causa de um estupro nunca contado pra ninguém, tinha dado a luz a uma menina igualmente loira, dos olhos azuis e das bochechas rosadas. Chamaram-na de Enkel. Seria a experiência mais pura, mais linda e perfeita, mas havia algo errado com a garota. E com a ajuda do pouco tempo e pouco amor vindo da mãe, ela não se portava normalmente. Nos primeiros anos, a mãe da menina estranhava o fato de Enkel não chorar. Não chorará na hora do parto, e nem depois. Simplesmente permanecia quieta, com os grandes olhos azuis claros sempre olhando fixamente pra face de quem a pegasse no colo, ou olhando para todos os cantos do quarto onde estava.

Ao começar a andar, Enkel quebrava tudo ao seu alcance. Não sem querer, simplesmente pegava as coisas e quebrava da maneira que achava mais prudente. E gostava de quebrar coisas que tinham algum valor para os outros. Parecia que sabia como fazer os outros sofrer. Várias vezes o marido de Elizabeth espancou Enkel, castigou-a. Mas nenhuma lágrima, só o rosto infantil, olhando o homem. Ele se sentia culpado, todas as vezes, mas não via outras alternativas. Nessa época não passava dos três anos. E por mais que a mãe dela tentasse, ela não falava. Ficava quieta, com os lábios cerrados, apenas olhando-a e a mãe implorando pra que ela falasse “mamãe”.

Com a idade de sete anos, as coisas começaram a ficar um pouco mais sérias. Quebrar janelas já não era dos seus passatempos favoritos, mas sim matar pequenos animais. Constantemente achavam-na em galinheiros coberta de sangue e penas de galinha. Matou uns três gatos, vários ratos, qualquer pássaros descuidado. A primeira vez que Elizabeth viu a menina sorrir foi quando tinha dez anos de idade. Ela estava com a machadinha de lenha nas mãos, e o cabrito da família estava esquartejado.

Até tentaram colocar a pequena junto com outras crianças em uma escolinha infantil. Mas ela sempre estava perseguindo as outras meninas e meninos, batendo, puxando os cabelos, mordendo as crianças até que o sangue saísse grosso entre os cortes dos dentes de Enkel.

Aquilo foi a gota d’agua.

Todas as pessoas da cidade estavam amedrontadas pela a alma Enkel. Os mais velhos diziam que ela era o pecado em carne e osso, e outros diziam que era a filha do próprio Belzebu. Nenhuma família dormia sossegada, nenhuma criança brincava na rua, e constantemente os cabelos loiros avoaçados pelas ruas atormentavam os moradores. Elizabeth teve de tomar medidas drásticas e acabou por trancar garota no porão de dois metros por quatro que tinha em casa. Só abria a porta pra alimentar a menina. Alguns padres, exorcistas, benzedeiros e até feiticeiros (nos momentos de mais fúria de Enkel, quando se podia ouvir ela se debatendo contra as paredes do porão) foram convocados, mas nenhuma reza, mandinga ou magia acalmava a menina. Ela só saia de lá uma vez por mês, quando precisavam de ajuda de pelo menos cinco homens adultos para amarrá-la e arrastá-la para a igreja.

Aos 17 anos, com uma inteligência incomparável para qualquer pessoa residente naquela vilinha, a fúria de Enkel estava cada vez maior. E piorava. Entendia o medo deles, e isso fazia a sorrir, e o ódio nunca explicado, e a vontade de matar, e a vontade de provocar os outros, de sangue, de ser dona da dor só crescia. Uma vez, no dia da igreja, foi jogada de costas contra a mesa da cozinha enquanto era dominada. A mão dela escorregou rapidamente e uma faca foi parar debaixo da saia. 

Alguns dias depois, quando seus malditos pais saiam para ir rezar por sua alma, ela tentava quebrar o cadeado pela fenda que tinha entro as madeiras da parede e a da porta. Seus pais saiam juntos de casa uma hora por dia, então já estava com o cálculo feito na sua cabeça. Mas não foi necessário. Não demorou mais de vinte minutos para desvendar o ângulo certo de virar a faca para o cadeado velho ceder. Se foi com ajuda da raiva ou de algo mais, não se sabe. Estava livre. 

Pulou a janela, com suas roupas sujas e fedendo, duma mistura sangue e urina seca, com os cabelos desgrenhados de ficar 24 horas por dia num local pequeno e úmido. Com metade da vila na igreja, as ruas estavam vazias e foi fácil de roubar de um varal uma calça e camisa de menino e correr em direção da floresta que cercava a vila. Vestiu as roupas, não com muita dificuldade, pois apesar de ser roupas de criança, Enkel nunca desenvolvera muito. Com galhos finos trançados e amarrou os cabelos em um rabo de cavalo. Correu a noite toda. 

Não demorou muito pra ter que se meter mais pra dentro da floresta, pois os homens estavam atrás dela, gritando seu nome, suplicando para que aparecesse. Mas sabia que no fundo nenhum deles queria que ela aparecesse, seria uma benção se sumisse de vez pra sempre, não é mesmo? Todos estavam apavorados com a ideia de que a o demônio loiro voltasse. Ela só não atacou naquele momento pois vira armas. Esperaria. 

Enquanto os homemns adentrava a floresta e as mulheres e crianças se abrigavam em suas casas, Enkel deu a volta na cidade, e entrou de volta nas suas ruas desertas e de pouca iluminação. Andou em direção da igreja. Entrou, sujando o piso de terra molhada, com a imagem de cristo em uma cruz acima do altar, lhe fitando com o olhar triste. Parecia saber que aquela menina não tinha mais alma pra ele, e nunca teve. Ela sorriu, com os dentes escancarados para aquela estátua que não tinha nenhum significado para ela. 

Com as mãospequenas, derrubou propositalmente algumas velas que provavelmente tinham sido acesas em piedade de seu ser. O fogo se espalhou rápido.  Andando de costas para a porta e olhando o as chamas se espalhar com facilidade, saiu e sorriu. Umedeceu os lábios, e quase que em um piscar de olhos a igreja toda ardia, labaredas amarelas e vermelhas, vorazes e cheia com a fúria de Enkel.

A cidade ia despertando de seus pesadelos, pra viver um real. Pouco a pouco algumas pessoas começaram a sair de suas casas gritando, pedindo ajuda a Deus, e desesperadas. Logo havia uma multidão as costas da garota loira, que não se virou, mas tinha em seu rosto o sorriso do próprio diabo. Se debatendo entre a multidão até chegar à frente estava Elizabeth.

"Enkel!" Gritou a mulher ao chegar à frente de todos, mas ficou a uma distância de cinco metros da filha. A menina se virou, seus olhos cintilavam. 

"Mamãe," soou debochada, e a mulher caiu de joelhos ao ouvir pela primeira vez a voz do seu bebê. A garota riu e se aproximou da mulher de joelhos, puxando-a pelos cabelos pra mais perto do fogo. 

A multidão se mexia a cada movimento de Enkel, mas ninguém fazia nada. Era como a última dança. Ninguém tinha coragem de falar, até parece que tinham se esquecido como se andava, ou fazia qualquer coisa. "Por quê? Por quê?" Gritava a mãe desamparada enquanto a filha a arrastava pelos cabelos pra mais perto da igreja. Parecia ter uma força descomunal. Jogou a no chão, fazendo um pouco de poeira levantar. Com toda a fúria quente no peito, Enkel falou. No momento pareciam apenas palavras baixas só para a mãe, mas todos os aldeões juraram ouvir como se fossem sussurros dentro dos próprios ouvidos.

"O diabo mandou lembranças da onde eu vim, e disse que não se esqueceu dos teus pecados."

Todos olhando Enkel, Enkel olhando todos, sua mãe chorando fracamente. Ela virou as costas ao povo e foi entrando na igreja em chamas, devagar, tranquila, a fúria queimada.

Houve boatos por anos sobre essa história, sobre a roupa que ela usava de verdade, que na verdade ela nem era loira, que a mãe dela não tinha esse nome, que algumas pessoas desmaiaram enquanto ela falava, ou até que morreram. Mas a frase é sempre a mesma. O nome é sempre o mesmo.

O porão, o sangue e o fogo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A luz que a lua não tem

E estava ali lua, parada. Minha alma quase sempre inquieta, acalma. Meu pés frios, esquentam. Minha alma derrete, é o verão. Mais uma palavras no papel, um pé na frente do futuro mas não pra seguir, sim pra tropeçar. 

E a lua amarela, estática, me olhando. 

Sou tão lua quanto ela própria. Sozinha, precisando de uma iluminação que eu nunca fui capaz de produzir por mim só ser. Preciso de ti como todas as outras coisas que não tenho. Preciso um pouco mais de mim, um pouco mais de não pensar demais.

Mais uma vez sozinha. 

sábado, 10 de dezembro de 2011

Um dia qualquer

Segunda-feira, um tédio total. O sol resolveu matar todo mundo hoje. Ninguém prestando atenção em nenhuma palavra que a palestrante falava, tanto que até ela se perdeu várias vezes, e não se achava. Gaguejava bastante, provavelmente a primeira vez que fazia aquilo, mas isso não era problema de ninguém. Dia errado pra ela começar, muito quente. Quem diria que depois dali ela beberia tanto o seu fracasso e acabaria em um hospital em coma alcoólico. Mas isso não era problema de ninguém dentro daquele do salão. Cada um tinha seus próprios problemas.

O ar estava quebrado, e os ventiladores portáteis que trouxeram não eram suficientes. Uma menina de cabelo cacheada estava grávida de poucas semanas, e batucava o lápis na mesa freneticamente. Mas isso não era problema de ninguém, além dela e do loirinho do fundo da sala, que roía as unhas. O pai.

Outra fungava e espirrava freneticamente, gripada em dezembro com os termômetros 39 graus, talvez 40. Morreu uns dias depois da palestra. Mas nem foi da gripe, atropelada mesmo. Mas isso era um problema de ninguém ali no salão.

Tinha um cara, chamado... Ninguém sabia o nome dele na real, mas chamavam ele de Jones. Jones dormia em todas as aulas, todas as palavras, o intervalo inteiro. Um vagabundo visto pelos outros dali, babando na classe em cima dos próprios livros. O que ninguém sabia é que ele trabalhava a noite toda pra sustentar a mãe viciada e a irmã menor, tinha no máximo quatro horas de sono decente e ainda tinha que estudar absurdamente mais do que todos em sua volta para manter a bolsa naquela maldita faculdade. 

Naquele calor que me faz crer fielmente que o inferno era ali, eu não tinha nenhum problema. Eu achava que tinha, vários. Tipo as contas, os amores, mas os meus eram menor. Eu era menor. Bem pequeno. E no final, todo mundo dentro do seu próprio mundo de problemas, crescendo, chorando, desistindo e morrendo. 

 Mais morrendo do que qualquer coisa.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Obsoleto

- Toda a sua negação não vale um centavo! Eu me lembro bem da vez que tu escreveu, e disse, e sentiu que me amava. Você pode enganar todo mundo, menos a mim.

- Tanto faz.

- Da onde que veio toda essa indiferença? E pra que essa indiferença? Tu costumava a me amar, e ler os teus poemas pra mim. Pra que isso tudo agora?

- Sei lá.

- Sei lá? SEI LÁ? Porra, Luiza.

- É, sei lá.

- Caralho. Eu achei que tu me amava.

- Eu também achei.

Coçou o nariz.

- Vai embora.

- Eu já fui faz tempo.

Daí se beijaram.

E começou tudo de novo. Ela se afastou, ele ficou puto, ela volta, e ele acha que vai dar certo. Mas nunca dá. Sempre dá.

- Até quando, Luiza? Até quando?

Ela traga o cigarro lentamente, e sorri com os olhos semi-cerrados.

-Pra sempre.

E ri.

Cruel

Aquela lanchonete, do fim da rua. Tão perto e tão longe.
E tu decidiu que ia se encontrar lá.
Lá com outro alguém, que não eu, que tão distante.
E eu?
Onde eu estou?
-
E eu que só tinha um coração,
me sinto um tanto afundando na lama.
Agora ando pelas ruas esperando que alguém me encontre,
alguém que não é real, ou que não existe.
A culpa é sua.
-
Chora.
E todos seus suicídios, e todos os meus.
Eu vou tentar mais umas vez, vem comigo.
Olha só meu peito aberto, toda a vergonha escorrendo entre meus dentes.
-
As mãos em ti não são as minhas.
As minha mãos não são as minhas.
As suas mãos, cadê?
Cocaína.
E teu sorriso, aberto, maniaco.
E teu choro, sofrido, desesperado.
São 5 e meia da manhã.
-
E então eu morri na praia.
e você feliz na tua casa de campo,
com seus filhos puxando sua saia rodada.
Eu afogado.
Eu morto.
Podia ter sido diferente.