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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A chuva da garota

Quando mais novo, nos anos noventa, me mudei muitas vezes. Variando de duplex, casas com grandes quintais, sem quintais, alugadas, compradas, apartamentos, trailers, hotéis e outros lugares que talvez teria vergonha de falar. Mas minha família não se mudavam porque meu pai recebia grandes promoções ou por minha mãe ser uma renomeada escritora que precisava estar por todos os cantos do país para autografar livros. Não. Nós só nos mudávamos porque era assim que eles gostavam de viver. Não se apegavam a lugares, amigos ou empregos. Até cheguei a ser matriculado em algumas escolas, mas nunca deu muito certo, então minha escola foi o mundo, meus professores foram meus pais e os livros, meus colegas as pessoas que conheci por toda parte. 

Gostavam de conhecer todo o tipo de gente, e isso foi algo que puxei deles.

Eu não era deslocado ou tímido. Muito pelo contrário, gostava de fazer amizades por cada canto que passava, não importava idade, cor ou raça, eu sempre estava envolta dos amigos que meus pais faziam e as crianças curiosas que sempre rodeavam a gente por sermos novos na área. Há muitos lugares especiais em meu coração (como o pequeno vilarejo à beira do rio e república no topo do morro), onde aprendi coisas que nunca vou esquecer, que me fizeram ser quem sou. 

Mas nada foi tão marcante pra mim quanto a garota da chuva.

Foi no alto dos meus 14 anos quando adquirimos nosso primeiro trailer. Tínhamos permanecido em uma cidade pequena por quase um ano inteiro para que conseguissem juntar dinheiro suficiente para comprá-lo, para pagar a gasolina e outras despesas. Eu estava muito ansioso para essa viagem, porque já tinha me acostumado a me mudar mais ou menos a cada três meses, então doze meses pisando no mesmo chão estava me fazendo ficar ansioso. Ao contrário das pessoas que sentem falta de suas casas, eu estava doente por um novo lar. Viajamos por três dias direto, meus pais revezando a direção a cada doze horas para que um pudesse dormir e comer alguma coisa.

Eu dormia quando chegamos no estacionamento de trailers. Pela manhã pude ver que tinham mais de vinte espalhados por lá, estacionados de uma forma desorganizada que chegava a ser reconfortante. Foi o barulho quente de pessoas falando e rindo que me fez despertar do sono pesado no pequeno sofá que eu tinha me escorado. Era bom, eu gostava desse tipo de gente, calorosa e acolhedora. O local anterior era pequeno e com ares sombrios, de um jeito que faz a alma pesar. Mas talvez isso tenha sido uma coisa boa, as experiencias no estacionamento serem extremamente gratificantes. 

Desci do trailer e o sol ofuscou meus olhos. Eu não conseguia parar de sorrir. Havia uma grande mesa estendida na rua onde todos comiam, bebiam e falavam sem parar. As vezes eu podia ouvir até línguas estrangeiras no meio de risadas um tanto embriagadas. Alguns comiam de pé, outros estavam perto das churrasqueiras alinhadas sentados em cadeiras de praia, tinha uns tocando violão acompanhados de outros que cantavam canções que eu nunca ouvira antes. Mas eram lindas.

O calor deixava o que estava amostra das pessoas sempre estavam vermelhos ou descascados, e haviam um cheiro desconhecido que eu sempre vou me lembrar como a descrição perfeita da felicidade. 

Depois de alguns minutos conhecendo alguns "vizinho", encontrei meus pais sentados em uma toalha conversando com uma mulher, o qual era chamada carinhosamente de Baba, que eu chutei ter uns 70 anos por sua aparência, mas ela falava como uma moça de 20 anos. Era engraçada e tinha uma desenvoltura magnífica. Todos os dias eu ia até seu trailer para ouvir algumas de suas histórias loucas, as melhores eu ouvi quanto fui sozinho. Fazia um chá maravilhoso, fechava os olhos e sua língua ia despejando relatos tão magníficos que as vezes achava ser pura mente ficção.

As vezes penso em Baba e me pergunto se ela realmente era desse planeta. 

Quase todas as minhas lembranças do estacionamento são de sol fervoroso, forte, radiante, com apenas uma ou duas pequenas nuvens no céu. Na distância haviam paisagens de montanhas, que de tão longe se tornavam menores que meu polegar esticado. Mas há uma memória especifica que nunca saíra da minha mente, nem mesmo em meu leito de morte.

A chuva da garota.

O dia começou cinzento, com muito vento e eu pude ver as mulheres tirando as roupas dos varais improvisados e chamando os filhos mais velhos para dentro do trailers e carregando os mais novos no colo. Todos se trancaram em seus trailers, e o estacionamento se transformou completo silêncio por alguns minutos. Ao longe eu podia ouvir trovões que pareciam como sons de tambores. Fiquei olhando por uma janelinha, esperando os primeiros pingos de chuva cair. Foi uma tempestade intensa, daquelas que mantem um ritmo com seus pingos enormes e pesados. Essa chuva se manteve forte do minuto que começou até o que se cessou.

Meus pais foram se deitar e pareceram adormecer profundamente com o som acolhedor que a gotas fazia batendo no teto de aço, enquanto fiquei debruçado na em uma janela. Dentro do meu coração eu sabia que estava esperando algo, mas não sabia o que. Então eu a vi. Vestida em um vestido amarelo rodado de alças que iam até os joelho, parecia ter saído do nada. Tinha os cabelos curtos grudados no rosto redondo. E ela não parava de sorrir nem por um segundo. Não tinha sapatos e eu fiquei me perguntando se não doía seus pequenos pés no chão incrustado de pequenas pedras soltas. Não sei se me viu, mas enquanto girava de braços abertos sorrindo pro céu, tenho certeza que nossos olhares se encontraram através do vidro.

Até hoje fico triste por ela não estar perto o suficiente para eu ver a cor de seus olhos, mas quando ela vem me visitar em meus sonhos e me olha de perto, são cores de oliva. Deslumbrante. Mesmo de baixo da chuva gelada suas bochechas continuavam rosadas. Parecia ser talvez um ou dois anos mais velha que eu, e ficou ali dançando para aquela música que tocava somente em sua cabeça.


Então, poucos segundos antes da chuva acabar, em um piscar de olhos muito demorado que dei, ela sumiu. E a chuva foi com ela. Abri a porta e pulei para fora, e corri pelo estacionamento, mas  como uma fada ela partiu tão misteriosamente quanto chegou. Tentei descrever o melhor que eu pude a Baba, pois depois de perguntar a todos os que eu tinha feito amizade sobre a menina, era minha última chance. Mas ela também não sabia de nada. Por que eu não sai na chuva? 

Não falei mais sobre esse assunto com meus pais ou com mais ninguém, pois não queria que achassem que eu estava ficando louco ou remoendo uma alucinação. Mas sei que eu não tinha inventado aquilo, que não era coisa só da minha cabeça. A menina do vestido amarelo era tão real quanto a chuva. Não ficamos no estacionamento mais de 4 meses.

Eu ainda, toda vez que chove, não importa onde eu esteja, me debruço na janela mais próxima, esperando que possa ver aqueles pés descalços e cabelos molhados, girando e sorrindo. Mesmo que ela não saiba, que ninguém saiba, eu sei que ela estava sorrindo para mim.

E ontem a noite, eu a vi.

Texto de 2013
Remasterizado em 2017

4 comentários:

  1. Daora, dá até pra fazer um livro usando esse conto como raíz {o,o}

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  2. Angustiante a ideia de se apegar a alguém que talvez nem exista. Genial.

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  3. O quanto essa estória pode me deixar reflexivo não sei, mas não ouso tentar saber.

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